ESCOLA FV.FABIO VICENTINI TREINAMENTO PARA HABILITADOS.
Quando um sujeito pode considerar que aquilo que ele vê ou escuta
(sensopercepção) pode não ser aquilo que ele vê e escuta, estamos no campo de uma
abertura, de uma dúvida, isto é, há uma dimensão simbólica eficaz.
Nesse caso, é possível uma articulação entre simbólico e imaginário, articulação
essa que implica uma suposição de saber no Outro. É o que se passa quando um sujeito
supõe um sentido em um incidente aparentemente sem sentido.
Seria esse tipo de suposição o que teria levado a Freud a se interrogar sobre um
distúrbio sofrido quando em uma viagem à Atenas? Trata-se de uma viagem realizada à
Atenas por Freud, acompanhado de seu irmão. A análise do distúrbio lá ocorrido foi
publicada sob o título “Um distúrbio de memória na Acrópole” (Freud, 1936/1987).
Freud relata que quando chegou à Acrópole, teve um sentimento de que o que
estava vendo ali “não era real”. A análise revelou que esse estranho sentimento era
efeito de uma relação entre um temor e um juízo: o temor por não poder ver a Acrópole
e a defesa concomitante: a Acrópole pode nem existir. Logo, porque se sentir deprimido
por não poder visitar a Acrópole, se afinal ela pode nem existir?
Essa cadeia de idéias estava associada a uma outra cadeia de idéias, na qual, a
relação com o pai, ocupava papel decisivo. Ao visitar a Acrópole, Freud estaria
superando o pai que lá nunca estivera. Ao invés de alucinar, Freud sentira uma
desrealização: ao invés de uma experiência de já visto (déjà vu), uma experiência de não
visto.
A análise permite revelar duas séries de idéias:
1) Uma primeira série, mais acessível à consciência: O que estou vendo, a
Acrópole, não é real – em algum momento duvidei da existência da Acrópole
– Será que algum dia poderei conhecer a Acrópole?
2) Uma segunda séria, submetida ao recalcamento: Meu pai morreu sem
conhecer a Acrópole. Eu não posso superar meu pai. A Acrópole não é real.
Nessa segunda série, a parte inicial foi submetida ao recalque, mas a conclusão
não, e ele serve para as duas séries. Assim, é possível concluir a relação de idéias sem
necessidade de suspender o recalque: A Acrópole não é real. Assim, o sentimento deestranheza (a desrealização) tem como explicação uma defesa psíquica: para não me
angustiar, não me sentir culpado, o que estou vendo não é real.
Essa análise de Freud pode então ser comparada ao que Joyce relata na obra
Retrato do artista quando jovem (Joyce, 1917/2006), enquanto experiência do
personagem adolescente Stephen Dedalus. A cena que será objeto de comparação é a do
afastamento da consciência de um sentimento de raiva para com os colegas que o
violentaram física e moralmente.
Todas as descrições de amor e ódio ferozes que encontrara em livros lhe
haviam parecido por conseguinte irreais. Mesmo naquela noite enquanto
tropeçava pela Jones’s Road em direção a sua casa sentia que alguma força o
estava despojando de sua casca madura e macia. (Joyce, 2006, p. 93)
O relato do sentimento ganha nas mãos do escritor uma descrição metafórica:
como uma casca que caísse do corpo. Um sentimento que foi rejeitado é comparado
com uma casca que cai do corpo. Joyce compara a expulsão de um sentimento como um
evento físico, mas não faz outras relações, não faz uma série. É uma casca; caiu, fim.
O que podemos extrair da comparação entre as duas cenas? Joyce compara a
expulsão de um sentimento como um evento físico, mas não faz outras relações, não faz
uma série. É uma casca, caiu, fim. Em Joyce, o sentimento de ódio não fez série com
outras experiências. Já Freud inseriu a experiência da Acrópole em uma série na qual o
pai, como primeiro, não viveu essa experiência.
Freud, ao contrário, tem uma experiência que não é suportada, é dolorosa, pois
lhe faz lembrar-se do pai que já morreu e que não pôde ter essa experiência que o filho
agora está tendo. Assim, Freud coloca a experiência da Acrópole em uma série, o pai,
como primeiro, não viveu essa experiência, então Freud não tem direito de vivê-la. É
como um antecessor, por que não há um antes de mim, essa vivência me é proibida.
Pois se a viver, serei o primeiro, como posso tomar o lugar de primeiro em relação ao
pai? É um paradoxo do recalque. Como posso ser o primeiro, é preciso um antes, um
pai. É a reivindicação do pai.
Freud faz um retrospecto em continuidade; da infância à vida adulta ele alterna o
desejo de visitar a Acrópole com o impedimento de visitar a Acrópole antes do pai. Mas
se o pai já morreu e não visitou a Acrópole, como ele, Freud, poderia visitar a
Acrópole? Ora, ele está lá, mas a Acrópole não existe. Eis uma alucinação negativa
relacionada ao pai que ele desejaria que ali também estivesse. O pai sancionaria e
existência da Acrópole? Eis o simbólico e o imaginário em junção, formando arealidade. Freud consegue se identificar ao pai: ele não viu a Acrópole, porque não
pôde viajar. Eu não vi a Acrópole, viajei, mas não estou aqui, isso que está aqui não
existe. Ele cria uma ficção, isso não existe. Freud, imaginariamente, faz algo funcionar
de modo a posicioná-lo no mesmo lugar do que o pai. É a junção entre imaginário e
simbólico no lugar de verdade. O real da verdade é inacessível, mas via imaginário e
simbólico algo funciona, uma ficção: meu desejo é que o meu pai estivesse também
aqui. O reconhecimento do desejo é o saber funcionando como verdade. Esse
reconhecimento é o trabalho do tratamento psicanalítico.
Freud inseriu a experiência da Acrópole em uma série: se o seu pai não visitou a
Acrópole, ele também não pode visitar a Acrópole. Há, portanto, um encadeamento de
associações relacionadas à Acrópole. E o que faz esse encadeamento é o amor ao pai: o
pai que transmitiu a castração, esse pai que falha, que não pôde visitar a Acrópole. O
tributo a esse pai é o que produziu a alucinação negativa e a análise desse sintoma
produz a dissolução do mesmo. A identificação ao pai impedia Freud de ver a Acrópole.
O que caracteriza essa experiência é a produção de uma continuidade entre: 1.
superação do pai, portanto, recalque da castração; e 2. admissão da castração: não posso
ver a Acrópole (não posso superar o pai).
Qual seria a estrutura topológica que corresponderia à experiência freudiana
junto a Acrópole? Essa continuidade corresponde topologicamente a uma fita de
Moebius. O desejo é o mesmo. Não cai, não se perde, não pode ser expulso como uma
casca que cai do corpo.
O personagem de Joyce tem a experiência de eliminação de um sentimento. Não
coloca em dúvida o sentimento, mas faz como se não sentisse, como se fosse algo
exterior, como uma casca que cai do corpo. O sentimento poderia ser como uma casca.
O sentimento é exterior, não é algo íntimo? Não me conecto com o que sinto, eu coloco
o que sinto como exterior ao meu eu. Como é possível colocar o que se sente como
exterior ao eu? Que topologia é essa. É uma topologia em que o avesso e o direito são
recortados de forma tal que não há possibilidade de passar do avesso ao direito nem do
direito ao avesso. “O que eu sinto e o que eu assumo que sinto” estão separados, como o
direito e o avesso sem que eu possa percorrer os dois lados em continuidade.
Referências bibliográficasFreud, S. (1987). Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. 2. ed. Tradução e revisão dirigidas por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago. “Um distúrbio de memória na Acrópole”, v. XXII, pp. 291-303.
Freud, S. (1990) Obras completas. Traduccíon directa del aleman: José Luis Etcheverry.
Buenos Aires: Amorrortu Editores. “Carta a Romain Rolland (Uma perturbación del
recuerdo em La Acrópolis)”
Fonte já existente.
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